quarta-feira, 25 de abril de 2018

Um passeio pela orla do Ribeirão Preto

Um passeio pela orla do Ribeirão Preto, uma porção de água que corta a cidade e dá nome a ela, se é que ainda podemos chamar aquilo de água. O cenário é a Avenida Jerônimo Gonçalves, que ostenta suas ainda jovens palmeiras-imperiais, replantadas para preservar o paisagismo afrancesado da Petit-Paris de ontem. As antigas estavam caindo sobre transeuntes e motoristas, chegaram a fazer algumas vítimas no final dos anos 90. Oito horas da manhã e um calor do capeta na Agro-Califórnia, a capital dos sevandijas de hoje. Ce é loko, pai! Olho pra dentro do ribeirão, os raios do sol nervoso atingem a superfície mostrando uma incrível transparência que ainda resta naquele caldo fétido. Dali dos para peitos, que me batem abaixo da cintura, consigo observar a fabulosa vida animal que resiste. Dali eu vejo pássaros que voam em meio ao canal caçando moscas e mosquitos. Vejo cágados que passam uma sensação de ânsia de vômito permanente por nadarem naquela mistura de agrotóxicos, detergentes e mil tipos de excrementos humanos. Eles sobrevivem bravamente botando suas pequenas cabeças pra fora e respirando um ar igualmente prejudicado. Coitados! E não só sobrevivem, como também se reproduzem demonstrando bastante fertilidade, adaptabilidade e pouco pudor diante dos olhares menosprezadores de seus carrascos humanos. Dali eu vejo peixes graúdos que vez ou outra vão parar na panela de pessoas que, mesmo sob as faces enojadas e punitivas dos cidadãos de bem que passam apressados em seus carrões, insistem em pescá-los a qualquer hora do dia. Há quem diga que são até vendidos em suculentas porções de botecos ali nas redondezas, fritinhos e à milanesa. Humm! Dou mais alguns passos e atravesso para o outro lado da Jerônimo e vou me aproximando da Campos Salles, rua pela qual subo para chegar ao meu destino. Penso que há 150 anos atrás poderíamos nos banhar naquele ribeirão, que hoje não passa de uma vala por onde escorrem as nossas mais variadas merdas. Voilà!

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Um texto para novembro

Eu sou branco e posso afirmar: não existe racismo reverso. Se uma pessoa negra fizer você sentir vergonha de ser branco com argumentos contundentes, sinta vergonha de ser branco. Apenas aceite e reflita. Vergonha é muito pouco perto do que se vive na pele negra, devemos ao menos imaginar aquilo que não sentimos.
Ninguém apaga o quão abjetos foram a maioria dos nossos ancestrais em relação ao povo negro. O povo branco historicamente valeu-se dos privilégios da escravidão e depois da "abolição" continuou assegurando vantagens, enquanto negros e negras eram forçados às margens pela repressão violenta das classes dirigentes.
O branco demonizou e criminalizou sua cultura e continente. Açoitou seus corpos e atribuiu padrão de feiura à sua aparência. Apropriou-se de seu conhecimento. Apesar do tempo, continua assim o fazendo.
Nós, descendentes de imigrantes europeus, devemos saber que nossos bisavós e tataravós vieram para o Brasil constituir a classe média, vieram “fazer a América”. Passaram dificuldades, trabalharam bastante, nada mais do que isso. A política de branqueamento da população brasileira foi a resposta republicana diante do medo da liberdade dos ex-escravizados, do medo que uma revolução negra ocorresse. No Brasil pós-abolição, privilégios econômicos e sociais foram concedidos às famílias brancas, enquanto para as famílias negras houve a continuidade da exclusão, da criminalização e do genocídio.
Hoje, no século XXI, a abolição ainda é um projeto fracassado e nós brancos continuamos a manter vantagens sociais num país de maioria negra. Uma maioria que tem na sua cultura traços fortes de resistência, resiliência e criatividade que admiro veementemente. Que não se atribui papel de vítima e sim de luta.
O racismo está em nós como manutenção desses privilégios, também se apresenta como menosprezo e discriminação em todos os âmbitos da sociedade. Isso quando não extrapola para violência estrita e deliberada. Somos racistas como continuidade histórica e civilização, é preciso reconhecer para poder desconstruir. O racismo é coisa que branco inventou, por isso é problema nosso. Não existe racismo reverso.
Dia 20 de novembro, dia da imortalidade de Zumbi dos Palmares.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Sobre lamas tóxicas

Há uma enxurrada de lama tóxica contaminando os corações dessa gente que mata com tiros de fuzil. Há uma enxurrada reacionária devastando as almas e cegando os olhos dessa gente crente em Deus. Uma lama que escorre dos esgotos dos bancos e congressos, das assembleias legislativas, da Rede Globo e da Igreja Universal. Às margens desse rio quase completamente devastado, vivemos incrédulos com tamanha indiferença e frieza, pois a água se contamina cada vez mais. O rio e seus peixes, a vida em sociedade e seus direitos sociais, a lama tóxica vem para exterminar tudo. Só há um caminho para conter a devastação total de nossa dignidade: sejamos nós uma perfeita barragem! Sejamos nós a justiça para que nenhuma Samarco, Polícia Militar ou Silas Malafaia possa engolir e matar absolutamente tudo. Plantando, reflorestando e fazendo rebrotar as nascentes de direitos humanos e de vida natural. Barrar e combater essa lama tóxica de privilégios e opressões que sufocam completamente a existência humana.

sábado, 31 de outubro de 2015

Um rabisco

Emoções implacáveis que nos fazem derramar as lágrimas do repensar. Lágrimas da reconstrução da conduta pessoal que a nossa capacidade permite ter. Que a nossa incapacidade nos força a ter. Que sejam lágrimas de força e superação, pois todos um dia tropeçam, ainda que uma rasteira o faça cair de encontro a sua própria falta de humildade. Acordar para a mudança é de fato necessário, tendo em vista que o sono da irreflexão se torna pesado com o tempo. Viver é um risco. Um risco torto. Muitas vezes um rabisco incompreensível, mas que é indubitavelmente a demonstração da capacidade humana de agredir e amar, não necessariamente nessa ordem. Obrigado mestres e mestras do ensinamento que ao meu lado estão.

domingo, 11 de outubro de 2015

Cervejas baratas

Ele estava ali
Tomando uma Antártica Subzero
Num boteco zoado
Tudo bem pra ele
Não se importava com as aparências ao redor
Só queria tomar umas cervejas baratas
Sem ser importunado
Seus joelhos doíam
Por isso não queria ir embora
Pegar um ônibus
Depois subir as escadas do seu apartamento
Financiado pela Caixa Econômica
De onde a sua mulher o havia expulsado na noite anterior
Ela não aguentava mais o seu bafo de cachaça
Não aguentava mais a louça suja
Não aguentava mais a vida ao seu lado
Pediu outra Subzero
Um moleque de rua lhe pediu pra comprar uma bala
Deu o dinheiro
Não quis a bala
Tinha que ir embora
Fazer sua mala
Bebeu o latão em três goles
Soprou um arroto quente
Pagou as quatro Subzeros e partiu
No ônibus ouviu pessoas comentarem sobre o seu odor
Se sentia um verdadeiro lixo
Lembrou que seu filho também havia comentado
Jogava na sua cara o vício e a falta de dinheiro
Maldita hora que resolveu se rebelar
Maldita hora
Deveria ter se contentado com um emprego qualquer
Mas se perdeu na busca de um sonho
A arte não era para um homem como ele
Quem acreditaria em sua obra
Um cachaceiro
Com o orgulho ferido
Com dores nos joelhos
Agora iria morar sozinho
Num quarto cozinha e banheiro
Com seu pincel telas e um cavalete
Pintaria os sonhos que não realizou
Pintaria a paz que desperdiçou

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Pai Xangô

Pai Xangô ficou sabendo
Pai já tá arresolvendo
Se num for ainda agora
Vai chegar é sem demora
Injustiça deixa não
O seu ôxe tá na mão
Antes docê perceber
Ele vem prarresolver
Tem covarde aí devendo
Pai Xangô ficou sabendo


terça-feira, 22 de setembro de 2015

Falem por mim

Palavras vãs que antes me escaparam, hoje assopro como a fumaça de um cigarro. Vejo-as girando, subindo, se dissipando com o vento. Não seria uma pena não dizê-las? Com licença, mas vai cumprir o seu destino, pensamento inútil. A miséria do excesso me acometeu, mostrando que o silêncio pode ser a melhor resolução. A partir de agora serei omisso com aquela regra que me obriga a dar respostas, a fazer perguntas, a comentar os surtos alheios, de raiva e de paixão. Não me escaparão mais palavras, nem de meus dedos, nem de minha língua. Quieto, irei só para casa. Deixarei que falem por mim, pois como bem sei, têm muito a dizer todos vocês. Então falem, falem por mim. Falem por seus ancestrais e por aqueles que ainda hão de vir daqui a um milhão de anos. Só não me culpem lá na frente pelo resultado de suas verborragias insanas, eu terei estado em silêncio. No silêncio continuarei, até que todos nós absolutamente mudos, consigamos juntos compreender alguma coisa.