Entre o cheiro do perfume invadindo suas narinas e a faca afiada invadindo sua carne, ele preferiu a faca. A lembrança que o perfume lhe trazia era mais aflitiva, mais terrível e absurda. Foi então que ela invadiu afiada, não a faca, e sim a lembrança, pois o perfume estava em tudo.
Quem dera se a terra de lá tivesse a água do céu de cá, onde jorra pra cair nesse asfalto desumano onde não repousa passarinho, só pneu de carro apressado. Quem dera se a boca de lá tivesse a comida da barriga de cá, onde o arroto despreza a saciedade já tão banal e fácil. Quem dera se os olhos de lá tivessem o brilho das vitrines de cá, onde a felicidade se resume à etiqueta, ao invés de ser espontânea, abstrata e gratuita. Quem dera se o amor de lá tivesse no coração de cá, onde só brota apego e vaidade, onde quase nunca nasce a resistência pra viver acima de tudo e perceber que o outro às vezes merece mais.