quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Mandela

Um líder revolucionário nunca morre. Sua história e suas ideias sobrevivem na alma daqueles que sustentam o seu legado, às vezes involuntariamente em suas mini-lutas cotidianas contra o racismo e a opressão econômica. Em nenhum lugar do mundo a ofensa capitalista/racista é tão presente quanto na África, mas Mandela foi um líder diplomático. Não se vestiu em armas, não combateu de forma sangrenta.Assim como Gandhi, ele mostrou ao opressor o requinte de sua própria maldade. É como se num jogo de espelhos o vilão atirasse contra si mesmo, ferindo sua própria dignidade. A violência nesse caso passava a ferir o violento, ao passo que o líder estava lá sorrindo de forma humilde e paciente aguardando sua compreensão. Outros líderes, não menos contraditórios e igualmente geniais, resolveram enfrentar guerras reais. Não foi o caso do sul-africano, pois ele resolveu conciliar e propagar o sonho de um país possível nas circunstâncias em que se encontrava. Um país onde vivem brancos, herdeiros de sangrentos colonizadores, e negros, herdeiros de povos usurpados. Ele acreditou nessa paz, acreditou que a contradição poderia ceder lugar ao respeito e ao desenvolvimento mútuo. Algo semelhante podemos esperar no Brasil, onde não apenas sujeitos diferentes possam conviver com respeito, mas também onde culturas diferentes possam brindar umas às outras. Não é o que vemos/vivemos hoje, mas um sorriso à lá Mandela pode fazer acreditar...

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Germinar

Pobre daqueles que não percebem suas próprias misérias interiores. Seguem adiante convictos de que o cheiro podre vem sempre do outro, ou da esquina. Não há beleza na perfeição, há somente a perfeição inerte e monocromática. É importante convencer-se de que seremos sempre incompletos, isso ajuda a ver no outro uma possibilidade de completude. Há encaixes que unem as pessoas, às vezes para nunca mais desencaixar. E de pensar que há por aí tanta gente incrível e imperfeita, mas que, no entanto, não se conhece. Talvez seja melhor assim, que não se conheçam e vivam espalhadas por aí. Assim, elas podem seguir em sua missão de sensibilizar o mundo, cada uma com o seu jeito sábio de ver e viver as coisas. É sabido que a insensatez tende a contaminar, pois todo ser humano carrega o seu germe, nasceu e vai morrer com ele. Por conta disso, vez ou outra, assistimos ou protagonizamos surtos coletivos de insensatez e intemperança. Assim como, vez ou outra, assistimos ou protagonizamos cenas de incrível sabedoria, criatividade e beleza, pois também carregamos os seus germes. Nessa longa peregrinação rumo a não se sabe onde, independente do compasso, viver não passa de uma oportunidade.

sábado, 28 de setembro de 2013

Fome de partida

Novos ares querem me respirar
Novas estradas querem me percorrer
Mas não encontro a despedida
Nem a fome de partida

Vou procurar no esquecimento
Lá na caixa das memórias
Aquela força de vontade
Minhas asas de liberdade

Quem sabe assim posso partir
Sem o compromisso de voltar
Despedir-me das dores
De tombos e antigos amores

Mas as cicatrizes irão comigo
Serão minha única bagagem
Para eu nunca me perder
Nem jamais me esquecer

Vou procurar no esquecimento
Lá na caixa das memórias
A coragem que um dia eu tive
Meu desejo de ser livre

terça-feira, 24 de setembro de 2013

O outro, esse espelho

Tentei me enxergar por inteiro, mas não foi possível. Meus olhos não alcançam certas regiões. Tentei um espelho, mas nem assim consegui. Por ele, só pude enxergar meus próprios olhos. Me viciei neles, achei que eles pudessem me responder, mas as perguntas voltavam. Enxerguei menos ainda. Olhos que se veem através de um espelho dizem muito pouco, ou quase nada. Afinal, quem você quer convencer? O melhor pode ser não ser. Não parecer. Não convencer. Só os outros podem nos enxergar por completo. Olham, reparam, assimilam, percebem. Você só se vê por inteiro através dos olhos dos outros, você é o que o outro vê.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Corpos encontrados

Quero agradecer aqui às pessoas que me abraçam e que, assim, me dão o direito de abraçá-las também. Não falo dos tapas nas costas. Falo dos abraços sinceros, aqueles que encontram peito com peito. Nem todos são tão apertados, alguns são mais tímidos. Outros ainda são cheirosos, e tem certos até excitantes. De qualquer forma, o carinho dos abraços é um bem necessário à vida. Dois corpos fazem mais sentido quando assim estão: abraçados, simplesmente encontrados.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Festa sagrada

Dançam lado a lado homens, mulheres e orixás. Unidos, festejam a vida em sua totalidade evolvendo sensualidades, astúcias e purezas, humanas e divinas. Celebram suas alegrias, suas dores, seus encantos e lamentos. Não há fugas, não há pudores, muito menos repressões. Todos se envolvem e se entrelaçam nessa experiência, nessa festa sagrada que é a vida. Aqui, o profano e o sagrado se encontram para gerar as pulsações do corpo e da alma. Os tambores dão o tom. Eles são como uma orquestra natural, como uma tempestade. Entre raios, trovões, lágrimas e suor, eles dançam lado a lado. São pele calejada, sangue, mente e espírito. São o ensinamento e, ao mesmo tempo, são a vontade de aprender. São expressão e sentimento. Todos juntos com os pés na terra numa ciranda em ritmo contínuo. Lado a lado, homens, mulheres e orixás.



quarta-feira, 24 de julho de 2013

Um edifício chamado felicidade

Tô andando pela calçada, olho para o lado, vejo um edifício que se chama felicità. Observo as sacadas, tudo muito luxuoso, limpo e agradável. Vejo agora o portão se abrir, um carro importado sair da garagem. Eu pensei: "por que você está saindo da felicidade, cara? fica aí, o mundo aqui fora é triste, rude, sujo e desagradável!". Ele vai sair porque a felicidade não basta e não é de graça. "E que tenha cuidado para que um dia alguém não tão feliz resolva experimentar à força esse seu sentimento"...

terça-feira, 16 de julho de 2013

Maracatu: sensibilidade e força

O Maracatu é cultura de resistência, uma ponte com a ancestralidade negra e nordestina desse país. Não é fácil levar um grupo no interior de São Paulo, muito menos manter o fundamento para que a coisa não vire um mero folclore. Conexões espirituais, sociais, humanas e educativas se fazem necessárias para que haja legitimidade. Portanto, não pense que a coisa é brincadeira, não pense sequer que é fácil levar um projeto como esse adiante. Ele sobrevive às custas de muita dedicação e, não raro, sacrifício pessoal e coletivo. Não temos busca por fama ou inserção no mercado, temos sim por existência e resistência. Aparecer por aparecer não é o nosso forte, queremos é fincar raízes e nos consolidar enquanto integração do corpo com a alma, da sensibilidade com a força, do material com o imaterial. Sempre reverenciando a fonte da tradição que são as nações pernambucanas, de onde vem a nossa inspiração e permissão para sermos portadores da tradição. Um salve a quem resiste e promove a cultura do Maracatu pelo Brasil afora, assim como tantas outras tradições populares!

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Ocupações

A aula pública com Celio Turino foi mais uma demonstração de interesse dos movimentos em promover o debate público em Ribeirão Preto. Compõe um processo muito rico de ações de ocupação na cidade, que vem agregando centenas de pessoas ano a ano. Gente interessada na reflexão e na ação política de forma apartidária, porém não menos responsável e dedicada.

Precisamos avançar (e muito) no que diz respeito à organização para que toda essa energia aplicada resulte, de fato, em mais qualidade à política institucional de Ribeirão. Sabemos que apenas refletir e agir pontualmente não criará avanços concretos, pois enquanto isso a política habitual vai sendo feita em nossas costas, ditando o rumo dos acontecimentos mais significativos.

Mudar a cultura política é uma missão que requer compreensão profunda das entranhas do poder, formada não apenas por governantes e seus partidos, mas também por interesses de empresários. Requer também a disputa por espaços estratégicos, o que não significa reproduzir modelos viciados. Uma das formas é forçar canais de diálogo para cobrar efetivamente aqueles que estão nessas instâncias.

Esse vem sendo o papel dos movimentos e de suas ações: qualificar o debate público, mapear as demandas e organizar as pessoas e grupos para uma reivindicação sólida e permanente. Passa por estratégias de formação política para a democracia participativa, que exige uma dose alta de autonomia e proatividade.

Que venham mais ocupações, acampamentos, aulas públicas e manifestações, afim de nos proporcionar cada vez mais maturidade. Seguimos!

(A aula pública referida ocorreu no 
dia 9 de julho de 2013 na esplanada do Theatro Pedro II em Ribeirão Preto, promovida de forma independente por agentes de movimentos sociais da cidade.)


quarta-feira, 12 de junho de 2013

"Não acredite em jovens"

O que a classe (da inteligência) média não enxerga é que a mídia manipula os fatos, enquanto nas ruas a polícia age com uma violência brutal a mando do governo. A mídia não quer esconder, ela quer distorcer para que a grande massa condene o direito à rua e aprove a ação policial. Esse procedimento é apenas mais um sintoma da opressão que se inicia na escola, isto é, a opressão intelectual que visa suprimir a capacidade de reflexão autônoma do sujeito. O Estado, por sua vez, solta os seus cães para dispersar o povo organizado em torno de seus objetivos mais do que legítimos. Opressão subjetiva e objetiva, vinda de todos os lados como bombas de gás lacrimogênio!

Mas qual é o recado que a inteligência média e conservadora não entende? Com certeza o recado subversivo dos manifestantes, pois o da polícia é muito mais compreensível. Mais do que isso, a repressão é desejada e apoiada abertamente. Enquanto os manifestantes promovem uma reflexão profunda através de um ato, convidando toda a população a repensar a própria sociedade, uma parte (manipulada) da população responde com desprezo e condenação.

Os fatos são pedagogicamente explicados pela grande mídia nos seguintes termos:

"Não acredite em jovens que vão às ruas, eles quebram a sua linda agência bancária; eles fazem você chegar mais tarde em casa e perder a novela; eles querem mudar o sistema, mas pra que se você adora as suas compras de supermercado?; eles são negativamente diferentes do seu filho, que só pode brincar no condomínio e fica doente quando anda na rua; eles são amigos de esquerdistas, gente que admira Che Guevara, aquele assassino cruel!"

E por aí vai, num tom cada vez mais cara de pau e determinado a nos convencer cegamente. Fazem isso para defender um sistema desigual, completamente dominado por interesses empresariais em nome do desenvolvimento da nação (uma outra mentira conveniente). Por isso, vamos ao "b a ba" da política das ruas: não acredite nos grandes canais de imprensa, eles são financiados por quem te explora; não confie na polícia, eles também são!

terça-feira, 11 de junho de 2013

Utopia

Tem dias que o coração da gente se inquieta e resolve viajar no tempo. De repente ele vai pro futuro, nos enchendo de desejos. Faz a gente olhar pra frente, erguer a cabeça e caminhar. As utopias são viagens mais longas, de corações corajosos e inconformados com o presente. Acontece que tem dias que ele resolve viajar em outro sentido. Ele vai pro passado fazendo a gente sentir saudade. Feliz é quem tem um coração viajante. Gente que sabe olhar pra frente e pra trás com o coração. Gente que não nega seus próprios desejos, utopias e saudades.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

LEGALIZAR SIM, POR QUE NÃO?

É claro que a erva pode te prejudicar, ela é uma substância que causa efeitos colaterais e se utilizada em excesso pode sim gerar consequências negativas. No entanto, em tempos de alimentação transgênica, plastificada e agro-entoxicada, o que mais te assusta? 

Vejo nos supermercados a quantidade de drogas liberadas dentro de lindas embalagens, e não estou falando de bebidas, mas de uma série de produtos (inclusive infantis) comprovadamente nocivos à nossa saúde. Produtos vendidos em falsas propagandas dignas de um mundo patético de ilusões.

Não que por isso seja importante legalizar, mas está aqui a prova de que o Estado não criminaliza a maconha pelo risco do consumo. Sem falar nas políticas de combate às drogas, uma verdadeira tragédia do ponto de vista conceitual e dos direitos humanos. Só fazem lotar cadeias e assolar periferias. O tráfico é um produto deste nosso sistema que defende a desigualdade social, que por sua vez fertiliza o campo da criminalidade. É um ciclo vicioso, só não enxerga quem não quer. O viciado financia o crime? Mas quem ganha produzindo armas? E o que transforma um ser humano em dependente químico? O que o transforma consumidor compulsivo? Em viciado em fast food? Em psicopata? Em alienado?

Não vou me meter a explicar tudo isso, mas desconfio que muita coisa seria resolvida a partir de uma educação menos competitiva e mais libertária. A partir de uma reorganização dos valores humanos que tornasse a escolha num ato mais racional e menos imposto por publicidades ou padrões de comportamento.

A demonização da planta e, consequentemente, do usuário, é um ato profundamente hipócrita. Não vou nem entrar no mérito dos benefícios da cannabis, seria entediante...

domingo, 2 de junho de 2013

Não me calo

Contar histórias pra quem? Pra quê? Por que a gente abre a boca nesse mundo onde palavras e ideais são o tempo todo tão banalizados? A verdade é que cada um tem o seu motivo pra falar. A verdade é que o desejo de jogar pro mundo o que se sente às vezes é maior que o desejo de silêncio. A gente deixa de ser prudente e se mostra pro outro. Melhor seria estar calado? Apenas ver e ouvir? Mas não, ele quer falar, expressar, porque a coisa mexe e remexe no interior dele. Ele não se contenta em assistir, ele quer também dar o significado, entender, discutir e errar. Quem sabe possa até convencer alguém? Hein? Convencer e caminhar junto? Na pior das hipóteses pode ser chamado de idiota ou imbecil. E por que não correr esse risco? Ele só não vai poder ser chamado de omisso, pois ele tentou, saiu da inércia e cumpriu um papel mais digno do que aquele outro que se calou diante dos fatos. Daquele que aceitou em silêncio a opressão. Daquele que preferiu ser um indivíduo aparentemente honesto e pacato na sua opinião contida. Daquele outro ainda que fingiu ser surdo e mudo como desculpa. Eu não me calo!

quarta-feira, 22 de maio de 2013

A violência das ruas

Quando os olhares se voltam para as ruas a violência sempre aparece, ela está lá todos os dias. Existem milhares de pessoas virando a madrugada nas ruas diariamente, sem casa e família por diversos motivos. Muitas dessas pessoas recorrem ao crime e às drogas, gerando uma população perigosa. Quando rola a Virada Cultural isso aparece de uma forma mais evidente porque todo mundo vê com os próprios olhos e sente na pele. Aí sai todo mundo dizendo: "que horror essa Virada!" e não consegue entender que o sistema político/econômico é quem produz a violência diária das ruas.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

125 anos de abolição inacabada


A lição do 13 de maio de 1888 é: nunca acredite na liberdade enquanto um presente, a liberdade é sempre uma conquista. A história mostra que depois da abolição começou uma nova fase de opressão para o negro no Brasil, ela perdura até os dias de hoje. O racismo é o pilar principal da nossa desigualdade social. Se não fosse a força da cultura africana, se não fossem o desejo e a vontade de preservá-la, provavelmente o sonho da elite brasileira teria se consagrado. O sonho de um país exclusivamente branco foi defendido e propagado, incentivou o investimento na imigração européia e sérias tentativas de extermínio de sua contraposição. O dia 13 de maio serve para lembrarmos que por aqui houve a vergonha da escravidão, e não para simbolizar a liberdade. As permanências históricas dos 4 séculos de trabalho escravo são evidentes. Esse dia deve ser um marco contra a escravização diária imposta pelo capitalismo, contra a institucionalização da mentira e em favor da reparação de antigas e insistentes feridas. Se 20 anos de ditadura machucam, imaginem 400 anos de escravidão. O Brasil ainda não conheceu o significado de liberdade e democracia, cabe a nós.

Sobre o fim das escolas

O fluxo ordeiro é o alimento da paz policial, saia da ordem e alimentará o seu ódio! Por que o professor é agredido a cassetete? Por que ele deve ser agredido? Eu fui professor e observando assim me sinto agredido também. Não apenas por me sentir da mesma classe, mas por observar que o nosso sistema admite um fato desse tipo. Quando o estado volta a sua raiva aos educadores da sociedade, está na verdade os admitindo como seres supérfluos. Não deveria ser uma calamidade pública? Talvez sim, mas o sistema viciou e fatos desse tipo já não tem a capacidade de indignar. São fatos que, junto a tantos outros, formam um esquema banal, repetitivo e facilmente remediável. O cassetete é um remédio, uma pílula de ordem a força. Seja um cidadão de bem tomando essa porrada! Temos alguma chance de atingir uma cultura de paz agredindo o professor nas classes e nas ruas? Sinceramente, clamo a todos os professores: acabem com as escolas! Que instituição é essa que estamos defendendo, se não uma anacrônica ferramenta de formatar seres humanos? Se as pessoas tem uma noção de liberdade hoje é porque elas tem as ruas, os fluxos e as culturas! Professores, não temos razões suficientes para continuar movendo esse sistema educacional falido. Clamo também aos alunos: acabem com as escolas! Tenho certeza que antes que não haja mais nenhum muro ou grade de escola em pé, já teremos a resposta para essa transformação. Temos os meios. Uma nova sociedade só será possível a partir de uma nova educação, que nada tenha a ver com a atual. Enquanto isso não ocorre, a violência segue nas ruas e dentro das escolas. Quem vai nos proteger, inclusive da polícia? Quem vai atender as principais demandas dos professores? É chegado o momento de pensar e agir por uma solução de baixo pra cima. Ela virá dos professores organizados e de toda a sociedade, e sem dúvidas será mais digna do que qualquer reivindicação ao governo.

PM de SP reprime professores na Av. Paulista (10/05/13)

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Desamor

Olha pra frente, e tira o olho de mim, sua ridícula!

Depois de ouvir tal frase em tom grave de ofensa e um tanto de ódio, só pensava em nunca mais vê-lo. Dispensou-o em casa e saiu às pressas com o som do carro no talo. Dirigia para casa em alta velocidade. Na mente injúrias e uma mancha que tomava conta de suas memórias. Parada no semáforo ainda teve que ouvir um caminhoneiro a chamar de gostosa. Dedo do 
meio! Saiu acelerando, pisou realmente fundo. Tão fundo, mas tão fundo que não garantiu a curva. Antes do estrondo, abriu os olhos.

Quando olhou para o lado, percebeu que ele também despertava. Seus olhos, ainda inchados, davam uma leve impressão de raiva contida, com certeza pela briga da noite anterior. Ela não queria se deixar levar pelo pesadelo, mas sabia que devia ser prudente. Tomou coragem e disse:

Hoje você vai embora de ônibus!

terça-feira, 16 de abril de 2013

Invasão

Entre o cheiro do perfume invadindo suas narinas e a faca afiada invadindo sua carne, ele preferiu a faca. A lembrança que o perfume lhe trazia era mais aflitiva, mais terrível e absurda. Foi então que ela invadiu afiada, não a faca, e sim a lembrança, pois o perfume estava em tudo.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Quem dera

Quem dera se a terra de lá tivesse a água do céu de cá, onde jorra pra cair nesse asfalto desumano onde não repousa passarinho, só pneu de carro apressado. Quem dera se a boca de lá tivesse a comida da barriga de cá, onde o arroto despreza a saciedade já tão banal e fácil. Quem dera se os olhos de lá tivessem o brilho das vitrines de cá, onde a felicidade se resume à etiqueta, ao invés de ser espontânea, abstrata e gratuita. Quem dera se o amor de lá tivesse no coração de cá, onde só brota apego e vaidade, onde quase nunca nasce a resistência pra viver acima de tudo e perceber que o outro às vezes merece mais.

domingo, 31 de março de 2013

Entusiasmo e engajamento - O caso Feliciano

As manifestações geradas pelo "caso Marco Feliciano" mostraram um ponto muito positivo, que a causa dos direitos dos homossexuais está se fortalecendo como nunca no Brasil. A homofobia nunca foi tão discutida, nunca entrou com tanta força pelos olhos e ouvidos da gente, nos obrigando a nos questionar sobre esse direito à diversidade. Hoje a maior parte da população conhece essa luta e está formando a sua opinião, o que já pode ser considerado uma grande vitória. Entretanto, a forma como essa revolta se aplicou nos protestos - em alguns casos - foi alarmante, principalmente no que se refere a um nítido preconceito contra as igrejas evangélicas. O choque religioso, o questionamento da fé alheia é um ato perigoso e que cristaliza um conflito insolúvel na sociedade. Além disso, o linchamento público do Pastor Feliciano desvia o foco da luta institucional e configura aquela velha história do "boi de piranha". Somos contra ele, mas a favor de quem? Onde queremos chegar? O que se faz necessário entender é que o avanço da causa não passa por um embate religioso, e sim pela organização e engajamento dos que se sentem atraídos por ela. Não basta apenas compartilhar e manifestar publicamente, é preciso trabalhar cotidianamente. Na política, o entusiasmo é uma chama intensa, que movimenta e contamina, mas que se apaga rapidamente. Muitos se rebelam sazonalmente, isso não constrói avanços democráticos. É fundamental criar uma dedicação paciente e a longo prazo, e não apenas nesse tema, mas em todos que dizem respeito a ampliação dos direitos humanos.

domingo, 24 de março de 2013

Desejos guardados

Tente passar a adorar aquilo que sempre odiou. Eis a beleza da contradição, quando ela te mostra que há vida, que seus valores não são estáticos. Um corpo humano nunca experimenta uma mesma sensação duas ou mais vezes. Pode ouvir a mesma música, mas não com os mesmos ouvidos. Pode sentir o mesmo cheiro podre, mas nunca irá sentir o mesmo nojo, nem fazer a mesma careta. A gente tem, se quiser, a capacidade de ser muitos em um só. Basta um pouco de coragem e a gente pode experimentar de tudo. Tem uma hora que aquele desejo guardado se liberta e você faz o que não sabia que queria, mas queria. É boa a sensação de se olhar e perguntar: quem é você? pensei que era eu! 

sexta-feira, 22 de março de 2013

O cientista político

Numa cidade nada pacata vive um cientista político, pelo menos é esta sua autodenominação. Convicto de que vive num mundo sórdido e pouco confiável, observa a vida cotidiana de seus concidadãos através de sua lupa pessimista. Dessas observações extrai documentos da mais alta importância, todos sempre muito bem distribuídos pela imprensa local, que lhe abre espaço dada a sua ótima reputação de colecionador de desafetos. Ele é pop e muito polêmico, porém pouco compreendido, justamente por um leve pedantismo, digno de qualquer cientista destacado. Entre ele e todos nós existe um abismo profundo onde está depositado o que resta da escassa moral que ainda existe por essas bandas. Ao seu lado só figurariam, se fossem capazes de atingir sua altivez, certos paladinos da retidão e dos bons costumes. Na verdade, ele faz questão de ostentar alguns péssimos hábitos, faz parte da manutenção de seu destacamento perante a insignificância de seus inimigos, ou seja, todos que o rodeiam. Resumindo, ele é politicamente incorreto, tem identidade debochada e faz escola nessa gloriosa forma de encarar a vida. Há indícios de que ele perambula secretamente por alguns porões ao lado de outros roedores da coisa pública, mas sobre isso nada podemos afirmar. Por outro lado, é muito difícil vê-lo nas ruas, pois ele não se envolve com as ações práticas da política, ditas por ele hábitos costumeiros de molecotes mimados e ingênuos. A democracia para ele se resume ao direito de proclamar suas verdades iluminadoras e absolutas, sempre mantendo sua imunidade aos imorais. Sua posição é de fato a de franco atirador, la do alto ele acerta precisamente em todos, ninguém escapa de sua mira precisa. E assim ele prossegue em sua heroica missão, delatando as bravatas alheias e inflando o seu generoso ego de ser solitário e perseguido. Um bravo guerreiro da causa própria. Vida longa ao cientista político!

quarta-feira, 20 de março de 2013

Teimoso

Nunca escreva versos ou qualquer outro texto quando estiver se sentindo triste, eles vão denunciar a sua fraqueza e, não apenas, também parecerão muito entediantes a quem os ler. A melhor coisa a fazer quando estiver se sentindo assim é deixar a tristeza penetrar, fazer o seu curso por todas as veias, ossos, pulmões, consciência e espírito. Sinta o seu trajeto, perceba o que ela quer te dizer, pode ser algo realmente interessante. Talvez essa tristeza seja uma forma de fazer brotar alguma coisa positiva, alguma mudança ou novidade. Seja o que for, com paciência ela irá mostrar o seu significado. Enquanto isso, não seja teimoso!

quarta-feira, 6 de março de 2013

O destino nada promete

Meu bem, quando disse que dividiria pra sempre o meu sucrilhos com você, era verdade. Mas você sabe, meu bem, todo encanto um dia acaba, e o que morava no futuro agora paga aluguel no passado. Meu bem, fiz de tudo pra sonhar de novo aquele velho sonho, mas acordei assustado perguntando quem era você. Não me desminta, meu bem, nunca fui daqueles que vacila quando se trata de um grande amor, mas eu pisquei e ao abrir os olhos simplesmente tudo mudou. Meu bem, eu não sei porque, mas de repente esse bem já não era mais meu. O destino nunca nos engana, porque nada promete. Não foi por mal, meu bem, eu sofri também.

sábado, 2 de março de 2013

28

O tempo é o alimento da existência. Sem ele não há desenvolvimento, não há movimento, não há sequer um simples momento. É o devir, a mudança, o vir a ser, o transformar. São 28 anos vividos e muito ainda a ser percorrido. Só não me sai da cabeça que o melhor da vida ainda está por vir. Tempo, eu não tenho medo, que venha mais uma primavera.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Passos lentos

Ela estava lá, atravessando a rua em passos lentos, com o pescoço esticado e o casco reluzindo ao brilho do sol. Eu também estava, vindo a quase cem por hora no meu uno branco sem calotas ouvindo um samba. Só a vi quando estava quase em cima. Um desvio com destreza e ela não foi atropelada. Na sequência vejo um carro parado no acostamento e o passageiro, já fora do veículo, correndo determinado a salvá-la. De repente ele para e põe as mãos na cabeça, a expressão de seu rosto é de muita aflição. Olho no retrovisor, vejo carros e um caminhão em alta velocidade. Lá em baixo está ela, aparentemente tranquila seguindo em frente na mesma lerdeza em suas perninhas curtas. Fecho os meus olhos, eu não quero ver. Depois de alguns segundos, volto a abrir os olhos, mas sem olhar no retrovisor. No final das contas, não sei o que aconteceu com a coitada. Só me resta a dúvida, por que diabos aquela tartaruga resolveu atravessar a rodovia?

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Pernas

Uma mãe descabelada gritando com seu pequeno filho porque ele resolveu dar dois passos para longe dela. Ela está sentada no ponto de ônibus, segura a cabeça numa mão e o cigarro na outra. Ele não obedece e resolve dar mais dois passos. O pequeno não estranha os gritos, parece ser corriqueiro. Ainda sentada ela aumenta o tom de voz e grita, agora desesperadamente. As pessoas ao redor olham com cara de estranhamento, algumas aceleram o passo para se distanciarem da triste cena. Eu observo de dentro do meu carro parado no semáforo e penso: no que um adulto supera uma criança? na inteligência? ou puramente na sua capacidade motora? talvez nem nisso! O garotinho queria usar as pernas, deve estar aprendendo a usá-las. A mãe não tem forças para acionar as suas, prefere obrigá-lo a voltar sentada e aos gritos. Depois da imaginação, o movimento das pernas é o que mais aproxima o ser humano da liberdade. Sai andando moleque!